Por Célia Ribeiro
Impossível não abrir um largo sorriso à simples menção dos saudosos carnavais das décadas de 70 e 80 do Yara Clube de Marília, considerados os melhores do interior paulista. Quantos casais se formaram rodopiando ao som das bandas de sucesso nos bailes da época? Os tacos de madeira, sobre o qual desfilaram muitas gerações, foram substituídos há alguns anos. Felizmente, antes de enfrentarem o cruel destino da fornalha, ganharam nova chance em projetos arquitetônicos que preservam a história ao utilizarem materiais de demolição.
 |
Dormentes da estrada de ferro compõem a escada na propriedade da arquiteta |
É com profundo respeito pela memória cultural e consciência preservacionista que a arquiteta Ângela Torres é uma profissional que se destaca por valorizar o reaproveitamento de materiais nos seus projetos. Ela chegou a trabalhar na construção de três residências edificadas com praticamente 100 por cento de material de demolição.
 |
Ângela Torres |
O processo criativo exige tempo e paciência. Ela contou que sempre oferece aos clientes a opção de reaproveitar alguns materiais, sejam tijolos antigos, grades, portas e janelas de construções centenárias ou madeira retirada da renovação de um telhado, por exemplo, que pode compor uma infinidade de opções nas novas construções.
 |
Casa principal de uma chácara utilizou vários elementos de demolição |
No entanto, quando os clientes abraçam a ideia, a resistência começa no canteiro de obras, com os trabalhadores da construção civil: “Eles falam: para que usar essas coisas velhas? Melhor comprar tudo novo”, observou a arquiteta explicando que recuperar os materiais de demolição exige alguns cuidados. Os tacos de madeira, por exemplo, precisam de remoção da cola, retirada de pregos e serem lixados antes da nova instalação.
 |
Tacos do Yara Clube revestem o lavabo |
Ex-jogadora de basquete por 11 anos, Ângela Torres tem muitas recordações dos velhos tacos do Yara Clube: “Vim várias vezes de Botucatu para jogar no Yara. Quando consegui os tacos --- foram uns dois caminhões --- peguei pra mim a parte que tinha a tinta do garrafão da quadra porque aquilo tem história”.
A madeira foi aproveitada em vários projetos, como em uma ampla sala onde o formato diferenciado dos tacos deu um charme especial e em uma parede de lavabo: do piso dos bailes e das competições esportivas, os tacos do Yara renasceram e chamam a atenção por sua beleza e durabilidade que atravessou décadas.
Ela citou outro caso de madeira salva da destruição: há 15 anos, mais ou menos, houve uma licitação para troca dos dormentes da estrada de ferro. E quem venceu foi uma carvoaria: “No fim, os trens não voltaram e aquela madeira nobre estava virando carvão. Consegui comprar da carvoaria alguns dormentes e utilizei em vários projetos”, revelou. Em sua propriedade, em ampla área verde preservada na zona leste, ela usou dormentes na confecção de bancos e na escadaria que divide o terreno em meio à natureza exuberante.
 |
Recuperados, tacos do Yara ganharam vida |
SUSTENTABILIDADE
Ter uma construção com selo de sustentabilidade ainda é missão quase impossível por conta do nível de exigência para se obter a certificação, observou a arquiteta. Ela comentou que, apesar disso, a preocupação com o meio-ambiente tem levado as pessoas a refletirem sobre a importância de olharem com mais atenção na hora de construírem ou reformarem evitando o desperdício de água, de energia elétrica, apostando no reaproveitamento de materiais.
“Eu faço minha parte. Em tudo o que é obra, mesmo nas obras mais modernas, eu consigo colocar dentro da modernidade a sustentabilidade e o reaproveitamento. Meus clientes são cientes disso”, afirmou. Ela assinalou que a instalação de cisternas para captação da água da chuva e o uso de energia solar são cada vez mais solicitados não apenas pela questão econômica, mas também pela consciência ambiental.
 |
Muitas residências optaram por hortas em caixotes de madeira |
Além de reduzir a geração de resíduos, o uso de materiais de demolição tem um impacto na qualidade da obra. A arquiteta afirmou que “os tijolos estão cada vez menores porque está cada vez mais difícil a matéria prima; tirar o barro dos rios que estão muito poluídos. Os tijolos de demolição são maiores, resistentes e, além de contarem uma história, dão um diferencial na obra dependendo de como forem empregados”.
 |
Com a reforma do telhado, a madeira foi aproveitada na área de lazer: economia |
Outro ponto favorável é a economia. Ângela contou que, na reforma do telhado de uma residência, empregou a madeira de ótima qualidade em uma parede na garagem e na área da churrasqueira. Ou seja, a matéria prima valiosa, que seria descartada, valorizou o projeto sem onerar o cliente que sempre comenta os elogios que recebe dos amigos e familiares que o visitam.
RESISTÊNCIA
A arquiteta lamentou a resistência de muitos trabalhadores da construção civil aos materiais reaproveitados, bem como a falta de mão-de-obra qualificada para trabalhar com produtos sustentáveis como os tijolos ecológicos. Ela falou, com tristeza, da dificuldade em seguir com obras em que a opção foi por esses tijolos que, em tese, não gerariam resíduo e nem desperdício porque são adquiridos na quantidade exata dos projetos.
 |
Tijolos ecológicos: dificuldade com mão-de-obra |
 |
Obra utiliza tijolos ecológicos: em tese, mais sustentáveis. |
“Não adianta falar que não vai ter resíduo se o trabalhador não souber utilizar o produto. Quando se usa tijolo ecológico não deve nem ter caçamba para retirar entulhos da obra. Eles já vêm com o espaço para passar as tubulações, são encaixados e tudo mais. Infelizmente, já tive muita perda de material porque não sabiam utiliza-los”, desabafou.
 |
Painel de madeira à esquerda foi removido.... |
 |
...e aproveitado no fechamento do acesso à cozinha. |
Mas, nem tudo é tristeza. Ângela informou que muitas empresas de revestimentos estão se dedicando a produzir dentro de uma nova proposta, “seja na economia de água no processo produtivo, seja no aproveitamento de um piso que quebrou e vai ser refeito”. O fator negativo ainda é o preço maior em relação à produção convencional.
 |
Tijolos de demolição são muito procurados por sua resistência e beleza |
“Ainda se fala muito em valores”, observou a arquiteta acrescentando que, ainda que timidamente, muitas pessoas têm optado por soluções que, de alguma maneira, contribuam para frear a degradação ambiental do planeta que pede socorro.
Para saber mais sobre Ângela Torres, neste blog há duas reportagens realizadas em 2012 e 2013 com a arquiteta. Leia AQUI e AQUI
Outra reportagem sobre construções sustentáveis pode ser lida AQUI
O contato da profissional é: torresarquitetura2000@gmail.com
Comentários
Postar um comentário
Seja bem-vindo(a). Seu comentário será postado, em breve.