domingo, 19 de agosto de 2018

PROFESSORA APOSENTADA TECE BOTINHAS DE LÃ PARA AQUECER IDOSOS DOS ASILOS

Por Célia Ribeiro

Era uma vez... Havia uma arca de madeira maciça cujas ferragens destacavam-se em meio à profusão de cores dos desenhos entalhados simetricamente. No seu interior, um tesouro mais valioso que as riquezas perseguidas pelos piratas: a arca está cheia de calor humano. Em forma de botinhas de lã, o bem precioso mantem-se protegido até chegar aos seus destinatários, os idosos abrigados nos asilos de Marília.

A arca guarda calor humano
As mãos que tecem as botinhas de lã movimentam-se no ritmo das batidas do coração. Uma professora de arte aposentada e artista plástica leva ao pé da letra os ensinamentos bíblicos segundo os quais a caridade não precisa de promoção. Ela concedeu esta entrevista, na noite fria de quarta-feira, sob a condição de manter-se anônima. Será chamada de IZ a partir de agora.
Iz espera juntar 60 pares, no mínimo, para doar


Há alguns anos IZ  sofre com uma terrível dor no ombro direito. Após a aposentadoria, ela conseguiu abandonar o tabagismo, mas entrou em depressão: “Ninguém me disse que isso ia acontecer. Parei de fumar sozinha, sem remédios ou ajuda”, relatou. Sem o desagradável odor do cigarro, pensou que poderia retomar uma atividade que lhe dava imenso prazer e ocupava o tempo, que era o tricô.
No entanto, com as fortes dores no ombro, até mesmo um pesado casaco que tinha começado a tricotar foi deixado de lado. A peça foi desmanchada e se transformou em um imenso novelo de lã, usado posteriormente para a produção em série das botinhas destinadas aos idosos.

“Sempre quis fazer alguma coisa para os velhinhos. Não posso visitá-los no asilo. Não aguento porque me apego muito. Então, pensei que poderia fazer as botinhas, mas eu não sabia fazer esse modelo”, recordou exibindo o sorriso de quem descobriu uma nova vocação. “Fui lá no YouTube e fiquei vendo vídeos e mais vídeos”, comentou ao explicar de onde tirou a receita para as peças de tamanhos variados, dos menores para as idosas até o número 44 para os velhinhos, como ela os chama, carinhosamente.
Iz e suas agulhas
Devido à limitação pelo ombro avariado, IZ conseguiu encontrar agulhas de tricô menores e mais leves e começou a tecer. Surpreendentemente, durante o trabalho que rende até um par e meio de botas de lã por dia, a dor desaparece como milagre. A explicação, segundo ela, “é Deus. Só pode ser Deus”.

CONES DE LÃ

No ano passado, IZ conseguiu fazer mais de 60 pares de botinhas com recursos próprios. Por incrível que pareça, nem na hora de entregar a doação ela aparece: “Peço para alguém levar lá pra mim”, contou. Quando perguntada sobre  o que sente ao terminar uma remessa e enviar para os asilos, a resposta flui com simplicidade: alívio!
Botinhas de lã para aquecer os velhinhos
A professora testou vários tipos de lã até chegar aos cones (foto) destinados à máquina de tricô, que utiliza para os trabalhos manuais. Ela explicou que trabalha com fios duplos e, por isso, usa sempre dois cones ao mesmo tempo, colocando de 76 a 84 pontos em cada agulha de tricô número 06. E como o milagre da multiplicação dos pães, IZ aproveita o máximo que pode, doando as pequenas sobras  de fios para uma amiga que tece colchas de retalhos de lã, também para doação. Nada se perde.
As mãos habilidosas a serviço do próximo
Com o gosto apurado e o talento dos artistas, IZ se recusa a tecer os trabalhos de qualquer jeito: “Não consigo fazer essa coisa retalhada. Tem que ficar bonitinho e bem quentinho. Uso agulha 06 para as peças ficarem bem macias, com pontos maiores”, assinalou. IZ disse que as botas não têm cordões para amarração e são confeccionadas para que os idosos coloquem  meias por baixo.

No estoque de materiais, IZ tinha apenas 03 cones de lã esta semana e mostrou-se aflita diante da dificuldade em conseguir o suficiente para chegar aos 100 pares de botas de lã até o fim do ano: “Todo mundo pensa que só serve no inverno. Mas, os velhinhos sentem frio nos pés o ano inteiro”, justificou.
Cones de lã: toda doaçao é bem-vinda
Cada cone, que ela adquire na Casa Ono, rende de 8 a 12 pares de botas, dependendo do tamanho. Por isso, ela espera contar com a solidariedade das pessoas. Aos mais próximos, ela começou uma campanha e conseguiu doações de um primo de São Paulo e até de um ex-aluno. O kit com duas unidades de cone de lã custa em torno de 53 reais e quem quiser colaborar, pode enviar os cones, na cor de preferência, para a recepção do Jornal da Manhã (Rua XV de Novembro, 883) ou entrar em contato pelo e-mail: blogmariliasustentavel@gmail.com

CARINHO

Embora seus pais tenham falecido há mais de 30 anos, IZ contou que em sua casa--- o marido e o casal de filhos universitários--- “todos têm muito carinho e paciência com os velhinhos”. Ela explicou seu interesse em ajudar os idosos dizendo que as crianças conseguem sensibilizar mais as pessoas e encontram auxilio com mais facilidade.

“Todo mundo olha a criança com meiguice, toca mais. O coitado do velhinho é meio enjeitado. Troca-se a fralda da criança com a maior boa vontade. Do velhinho, não é visto com o mesmo olhar”, observou exibindo um semblante de compaixão.
Botinha de tricô: calor o ano inteiro

E com um sorriso tímido, IZ encerrou a entrevista agradecendo o apoio do Jornal da Manhã à campanha e disse estar confiante na solidariedade humana: “No ano passado, fiz tudo sozinha. Este ano não tenho condições. Já fiz vários pares, mas ainda falta muito. Me dá uma angústia pensar que falta lã para eu terminar as botinhas e mandar logo para os velhinhos. O frio não espera”, finalizou.

* Reportagem publicada na edição impressa de 19.08.2018 do Jornal da Manhã

8 comentários:

  1. Que atitude nobre!
    Que Deus abençoe a Sra. IZ e tbm a vc Celinha por ter a sensibilidade de buscar e valorizar ações de amor ao próximo.

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    1. Querida Vera, seja sempre bem-vinda aqui. Obrigada pelas palavras de estímulo. A Senhora IZ é uma pessoa muito especial, mesmo. Beijão

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  2. Mais uma reportagem emocionante...Que prazer poder parabeniza-lá Celinha...e pra professora IZ,que Deus esteja a cada dia, abençoando sua vida!!!

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    1. Muito obrigada! Fico feliz quando consigo mostrar pessoas como a Senhora IZ. Grande abraço

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  3. Que encanto de história ... gostaria muito de conhecer a Senhora IZ ❣️

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    1. Silza querida, seja sempre bem-vinda à esta página. Creio que vc já a conhece! Bjs

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  4. Que exemplo ela passa pra gente. Pessoa linda, grande abraço. Obrigada por nos ensinar o amor tricotado.

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    1. Nelice, bem-vinda aqui, querida. Essa Senhora IZ é puro amor. Um exemplo para todos. Beijão

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