Arrastando a
velha sandália de pneu cujas tiras teimam em se despregar do solado gasto, o
homem de cabeça baixa e costas curvadas tem o olhar embaçado. O sol a pino
castiga a pele curtida e ele não se reconhece e nem ao lugar aonde chegou. Aparentando
setenta e poucos anos, o homem não lembra o próprio nome, de onde veio e nem
quando nasceu. Ao cruzar o portão, mais uma vez, ele sabe apenas que vai travar
uma dura batalha para encontrar sua essência, aquilo que era antes de perder-se
no mundo.
Ampla área verde: lugar de recomeçar. |
A chegada de um novo interno à Fumares (Fundação Mariliense de Recuperação Social), entidade retratada na reportagem de domingo passado, é acompanhada com curiosidade pelos 65 internos. Muitos estão ali pela terceira ou quarta vez e suas histórias são muito parecidas: depois de chegarem ao fundo do poço, finalmente aceitam ajuda e mudam-se para a entidade em busca do recomeço.
No entanto,
com o passar do tempo, a abstinência de álcool e drogas os desafia a procurarem
a liberdade deixando para trás todo o trabalho desenvolvido com afinco pela
equipe da instituição que, como não poderia deixar de ser, experimenta uma sensação
de impotência e tristeza por ter perdido mais uma batalha para a sedução das
ruas.
Trabalho no campo: terapia. |
“É muito
triste ver que, depois de alguns meses aqui, onde eles têm tudo para viverem
com segurança e conforto, acabam pedindo para sair. Ninguém prende ninguém.
Eles têm o direito de sairem na hora que quiserem, bastando assinar o termo de
desligamento. Mas, a gente fica arrasado quando isso acontece”, afirmou o
presidente da Fumares, Paulo Roberto Vieira da Costa.
FILA DA REPOSIÇÃO
Quando os
moradores de rua aceitam ajuda e ingressam na Fumares, eles recebem roupas e
calçados, lençóis, cobertores e travesseiros limpos e em bom estado. Toda
sexta-feira, quando toca a sirene, os internos fazem fila para reabastecerem
seus estoques de materiais de uso pessoal: sabonete, creme dental, escova de
dente, papel higiênico, aparelho de barbear e uma caixa de fósforos para os
fumantes.
Refeitório onde são alimentados com refeições balanceadas |
Os quartos
são limpos e equipados com armários e ventiladores onde se acomodam poucos
internos em cada unidade. Na verdade, eles vão aos quartos apenas para dormir
porque durante o dia há inúmeras atividades coletivas que funcionam como
terapia ocupacional. Assim, revezam-se para limpeza dos quartos, dos banheiros
dotados de chuveiros de água quente, da cozinha e das áreas comuns, praticam jardinagem,
trabalham na horta, cuidam dos frangos etc.
No fim do
dia, podem se distrair com jogos de sinuca ou relaxarem assistindo os programas
na TV de LCD de 50 polegadas com antena SKY, mostrada na reportagem passada. O
objetivo é manter os internos ocupados enquanto são providenciados documentos e
contatados seus familiares (quando possível) para que possam voltar à vida em
sociedade.
Frangos descongelando para o almoço |
O apoio
espiritual é muito valorizado, explicou o presidente da instituição. Ele informou
que há atividades com a presença de
religiosos tanto evangélicos como de católicos. São celebradas missas e
realizados cultos em que a palavra de Deus é apresentada aos ex-moradores de
rua como um bálsamo a lhes aliviar as dores da alma.
COMEMORAÇÕES
Paulo Vieira
da Costa destacou a participação de voluntários que visitam a instituição e
desenvolvem atividades educativas e recreativas. “Essa integração com a
comunidade é muito importante. Eles sentem que tem gente que se preocupa com
eles”, observou, contando que logo um grupo de internos irá a Aparecida do
Norte, acompanhado de monitores.
Uma indústria alimentícia doa uniformes e calçados usados de seus funcionários |
As datas comemorativas
também são lembradas na Fumares: na “Semana Santa” teve bacalhau no almoço e na
Páscoa os internos foram presenteados com chocolate. Além disso, uma vez por
mês, um proprietário de padaria da zona sul doa um bolo e a entidade
providencia salgadinhos e refrigerantes para a comemoração dos aniversários.
Só faltam as cortinas nos quartos, mas que chegarão em breve. |
Frutos amadurecendo: a natureza responde aos cuidados. |
Casa,
comida, roupa lavada, cama quente, apoio espiritual, lugar seguro. O que falta
aos internos que insistem em voltar às ruas após alguns meses? A resposta é
complexa. Mas o principal vilão, segundo o presidente da Fumares, é a dependência
química. “Estamos trazendo o N.A. (Narcóticos Anônimos) e reativando o A.A.
(Alcoólatras Anônimos), além de enviarmos alguns internos para tratamento no CAPS-AD
(Centro de Apoio Psicossocial – Álcool e Drogas)”, explicou o presidente. É um
paliativo, reconhece, mas melhor que nada.
Jogo de sinuca nos momentos de lazer |
Conforme
disse, “se em clínicas particulares, onde se paga para recuperar um dependente
químico é difícil conseguir a cura, porque muitos voltam a consumir drogas,
imagine aqui onde não temos estrutura para tratamento. A Fumares não é um lugar
para receber dependentes químicos. Para eles, teríamos que ter uma estrutura
maior, com mão-de-obra especializada etc”.
Segundo
Paulo Vieira da Costa, como a Fumares está localizada numa área ampla, às
margens da Rodovia Marília – Assis, no futuro o município poderia obter
recursos federais e estaduais para construir naquele espaço uma comunidade
terapêutica com a ajuda da sociedade: “Creio que um projeto desses teria o
apoio dos clubes de serviço, da indústria e de todos que gostariam de contribuir
com uma causa nobre”, observou.
Verduras e legumes frescos abastecem a Fumares e mais 32 instituições |
Enquanto o
projeto não sai do papel, “a Fumares vai continuar recebendo todos que dela
precisarem, fazendo seu trabalho com todo empenho para devolver a dignidade a
esses homens. Queremos não só dar comida, roupa limpa e documentos. Queremos
dar a oportunidade para que deixem o passado errante para trás e iniciem uma
nova caminhada”, finalizou o presidente.
LEIA AQUI A PRIMEIRA PARTE DESTA REPORTAGEM, PUBLICADA NO DIA 17.11.2013