Por Célia Ribeiro
Tintas, pincéis, cores, formas....esse era o mundo que o menino sonhava desbravar quando crescesse. De família humilde, entretanto, ele teve que optar por uma das profissões que não exigiam estudo formal, mas habilidade. Aos 71 anos, Juraci Neris do Santos, chamado carinhosamente de “mãos de tesoura”, é um dos últimos alfaiates de Marília que se dedica à confecção de ternos sob medida. E, com uma energia contagiante, faz planos de abrir uma escola para ensinar o ofício às novas gerações.
Neris é um dos poucos alfaiates na ativa em Marília
No fim da tarde de quinta-feira, ele
recebeu a reportagem para contar a sua história. De camisa e calça social,
parecia estar pronto para algum compromisso formal. Nada disso. A elegância do
alfaiate era a coisa mais natural, expressa na fala mansa, no sorriso fácil e
na alegria com que falou sobre a profissão.
Se a conversa tivesse ocorrido em um barzinho, haveria assunto para muitas saideiras. Afinal, com memória invejável, o Sr. Neris, como é conhecido, hipnotizava ao relatar, com riqueza de detalhes, como tudo começou: “Antigamente, existiam poucas profissões que o filho do pobre podia aprender. O filho do rico estudava, era médico, dentista. O filho do pobre tinha que ser sapateiro, alfaiate, pintor, mecânico”, assinalou.
Confecção de ternos exige habilidade
Neris disse que os meninos não
podiam ficar desocupados quando chegassem à adolescência. E assim, seu sonho de
ser pintor teve que ser adiado: “Disseram para ir com meu tio que era pedreiro.
Não gostei. Daí, falaram para ser mecânico e minha mãe reclamou que sujava
muito a roupa. Tinha meu primo que era alfaiate, o Waldomiro Moreira e, naquela
época, alfaiate trabalhava demais porque não tinha roupa pronta. Se precisasse
de uma calça ou de uma camisa, tinha que mandar fazer”.
Paletó e colete: elegância e bom gosto
Foi assim que Neris debutou na
profissão. Começou a aprender o ofício até que seu pai precisou fazer um
tratamento de saúde em São Paulo. Acabou se adaptando à Capital e comprou uma
banca de revistas na frente da Editora Abril. Ao chegar lá, Neris se animou
todo. Achou que poderia trabalhar com artes gráficas e publicidade.
Mas, seu pai tinha outros planos. Aproveitando que já tinha umas noções do aprendizado com o primo, Neris foi apresentado a um dos maiores alfaiates da época, o lendário Vincenzo Severo: “Eu era um molequinho do interior, aos 15 anos, e cheguei sem conhecer nada. Era época dos militares e peguei os tanques na rua”, recordou.
Tela ganhou o 1º prêmio no salão de artes em 2013
O italiano tinha uma clientela
selecionada formada por artistas, políticos e empresários abastados. Com muito
trabalho, colocou Neris para fazer entregas das encomendas: “Eu adorava mais
andar por São Paulo do que qualquer coisa. Ia na televisão entregar para os
artistas, ia ao Palácio entregar aos deputados, andando de ônibus e outras
vezes de taxi, comecei a conhecer a cidade”.
Mas, a fase de turista acidental
estava com os dias contados. Vincenzo chamou Neris para uma conversa séria. A
partir daquele dia ele aprenderia o ofício de verdade e deixaria as entregas
para outro. O rapaz ficou bem decepcionado, porque acabariam os passeios pela
Capital, mas resolveu aproveitar a oportunidade de trabalhar com um
profissional renomado para desenvolver suas habilidades.
Detalhe de paletó
VOLTA A MARILIA
Quem não deixou que ele parasse foi o mestre Vincenzo: “Naquela época, um alfaiate ganhava quatro vezes mais em São Paulo do que em Marília. Por isso, o italiano falou que não me deixaria ficar ganhando mixaria aqui se eu podia continuar trabalhando com qualidade para sua clientela”.
No começo, em Marília, Neris fazia ajustes em ternos, barras em calças etc, o que ainda faz para algumas lojas. Devagar, foi conquistando uma clientela que antes tinha que se deslocar aos grandes centros para conseguir um terno sob medida. E, assim, ele cortou o cordão umbilical alçando voo solo.
"Conexões": obra premiada em 2015
no Mapa Cultural Paulista do
Memorial da América Latina
CLIENTELA
Perguntado sobre o perfil de seus clientes, Neris não hesitou em responder: os advogados. “Agradeço a Deus pelos advogados. Eles gostam de estar bem vestidos, de impressionar. Mas, com a internet muita coisa mudou. As pessoas passaram a enxergar as coisas de modo diferente, como aqueles alfaiates italianos, ingleses. Na Europa só se usa roupa sob medida. Lá tem muita confecção, claro, mas a roupa sob medida é tradição. E o pessoal começou a ver isso na internet e a compreender que roupa sob medida é outra coisa”.
Ele se mostrou triste por ver que os profissionais mais antigos vão se aposentando ou falecendo e não surgem jovens dispostos a aprender o ofício. E, sem planos de parar de costurar, ele já sonha em criar uma escola “para passar um pouco do que aprendi”. Aliás, ele está pensando até em um canal no Youtube, para começar, e só depende de ajuda com a tecnologia que ainda não domina.
Neris contou que costuma atender
pai e filho e já fez até terno para criança. Mais que um alfaiate, ele
estabelece uma relação de amizade com muitos clientes que, após fazerem o
primeiro terno, não param mais. É o caso de um cliente do Tocantis: ele veio a
Marília, onde a filha estuda, precisou de um terno que foi feito por Neris.
Hoje, ele manda o tecido importado e Neris faz os ternos do jeito que ele gosta
e, dessa forma, além da filha, o pai tem mais um bom motivo para visitar a
cidade.
Para um bom terno a indicação é o tecido importado. Ele disse que, em Marília, os clientes só encontram na Casa Três Irmãos. Neris cobra em torno de três mil reais só a confecção do terno, que leva uma semana para ficar pronto. “Tem ternos prontos de excelente qualidade, como Ricardo Almeida, que custa 10 mil reais, ou Ermenegildo Zegna, na faixa dos 20 mil reais. Mas, não são sob medida”, assinalou.
Corte de calça exige técnica
ADMIRAÇÃO
Um dos jovens expoentes da advocacia mariliense, professor universitário e sócio do Escritório Gomes Altimari, Lucas Colombera chama a atenção por estar sempre impecavelmente vestido: “Conheci o Neris em 2013, quando fui comprar meu primeiro terno na loja Estivanelli e, por um azar do destino, a calça acabou tendo que promover um ajuste. Na época, indicaram o Neris e ele ainda estava alocado na Associação dos alfaiates”, recordou.
Lucas Colombera ao provar o último terno |
O advogado afirmou que “Marília tem um artista, tem uma pessoa que se compara aos grandes alfaiates do Brasil, em São Paulo, que cobram mais de 80 mil reais. O Neris tem competência técnica para entregar muito além do que acontece na capital. E Marília vai perder muito quando ele decidir aposentar as mãos de tesoura que ele realmente tem. Tenho admiração profunda pelo trabalho, pela capacidade técnica e, principalmente, pela pessoa que ele é”.
Perguntado sobre Lucas Colombera, Neris abriu um sorriso como quem fala de alguém muito próximo: “O Lucas é meu cliente faz um bom tempo, desde quando ele era magrinho”, disparou, gargalhando. Pelas suas contas, ele fez uns cinco ternos completos para o jovem advogado.
Ao encerrar a entrevista, Neris mostrou alguns de seus quadros e a coleção de publicações sobre pintores de todos os tempos. As artes plásticas ficaram em segundo plano, é verdade. Mas, a habilidade, o talento e o seu senso estético foram transmutados para a máquina de costura onde ele pode ser comparado aos grandes mestres.