sábado, 27 de outubro de 2018

GARIMPADOS EM DEMOLIÇÕES, MATERIAIS GANHAM NOVA VIDA NA CONSTRUÇÃO CIVIL.

Por Célia Ribeiro

Impossível não abrir um largo sorriso à simples menção dos saudosos carnavais das décadas de 70 e 80 do Yara Clube de Marília, considerados os melhores do interior paulista. Quantos casais se formaram rodopiando ao som das bandas de sucesso nos bailes da época? Os tacos de madeira, sobre o qual desfilaram muitas gerações, foram substituídos há alguns anos. Felizmente, antes de enfrentarem o cruel destino da fornalha, ganharam nova chance em projetos arquitetônicos que preservam a história ao utilizarem materiais de demolição.
Dormentes da estrada de ferro compõem a escada na propriedade da arquiteta
É com profundo respeito pela memória cultural e consciência preservacionista que a arquiteta Ângela Torres é uma profissional que se destaca por valorizar o reaproveitamento de materiais nos seus projetos. Ela chegou a trabalhar na construção de três residências edificadas com praticamente 100 por cento de material de demolição.

Ângela Torres
O processo criativo exige tempo e paciência. Ela contou que sempre oferece aos clientes a opção de reaproveitar alguns materiais, sejam tijolos antigos, grades, portas e janelas de construções centenárias ou madeira retirada da renovação de um telhado, por exemplo, que pode compor uma infinidade de opções nas novas construções.
Casa principal de uma chácara utilizou vários elementos de demolição
No entanto, quando os clientes abraçam a ideia, a resistência começa no canteiro de obras, com os trabalhadores da construção civil: “Eles falam: para que usar essas coisas velhas? Melhor comprar tudo novo”, observou a arquiteta explicando que recuperar os materiais de demolição exige alguns cuidados. Os tacos de madeira, por exemplo, precisam de remoção da cola, retirada de pregos e serem lixados antes da nova instalação.
Tacos do Yara Clube revestem o lavabo

Ex-jogadora de basquete por 11 anos, Ângela Torres tem muitas recordações dos velhos tacos do Yara Clube: “Vim várias vezes de Botucatu para jogar no Yara. Quando consegui os tacos --- foram uns dois caminhões --- peguei pra mim a parte que tinha a tinta do garrafão da quadra porque aquilo tem história”.

A madeira foi aproveitada em vários projetos, como em uma ampla sala onde o formato diferenciado dos tacos deu um charme especial e em uma parede de lavabo: do piso dos bailes e das competições esportivas, os tacos do Yara renasceram e chamam a atenção por sua beleza e durabilidade que atravessou décadas.

Ela citou outro caso de madeira salva da destruição: há 15 anos, mais ou menos, houve uma licitação para troca dos dormentes da estrada de ferro. E quem venceu foi uma carvoaria: “No fim, os trens não voltaram e aquela madeira nobre estava virando carvão. Consegui comprar da carvoaria alguns dormentes e utilizei em vários projetos”, revelou. Em sua propriedade, em ampla área verde preservada na zona leste, ela usou dormentes na confecção de bancos e na escadaria que divide o terreno em meio à natureza exuberante.
Recuperados, tacos do Yara ganharam vida

SUSTENTABILIDADE

Ter uma construção com selo de sustentabilidade ainda é missão quase impossível por conta do nível de exigência para se obter a certificação, observou a arquiteta. Ela comentou que, apesar disso, a preocupação com o meio-ambiente tem levado as pessoas a refletirem sobre a importância de olharem com mais atenção na hora de construírem ou reformarem evitando o desperdício de água, de energia elétrica, apostando no reaproveitamento de materiais.

“Eu faço minha parte. Em tudo o que é obra, mesmo nas obras mais modernas, eu consigo colocar dentro da modernidade a sustentabilidade e o reaproveitamento. Meus clientes são cientes disso”, afirmou. Ela assinalou que a instalação de cisternas para captação da água da chuva e o uso de energia solar são cada vez mais solicitados não apenas pela questão econômica, mas também pela consciência ambiental.
Muitas residências optaram por hortas em caixotes de madeira
Além de reduzir a geração de resíduos, o uso de materiais de demolição tem um impacto na qualidade da obra. A arquiteta afirmou que “os tijolos estão cada vez menores porque está cada vez mais difícil a matéria prima; tirar o barro dos rios que estão muito poluídos. Os tijolos de demolição são maiores, resistentes e, além de contarem uma história, dão um diferencial na obra dependendo de como forem empregados”.
Com a reforma do telhado, a madeira foi aproveitada na área de lazer: economia
Outro ponto favorável é a economia. Ângela contou que, na reforma do telhado de uma residência, empregou a madeira de ótima qualidade em uma parede na garagem e na área da churrasqueira. Ou seja, a matéria prima valiosa, que seria descartada, valorizou o projeto sem onerar o cliente que sempre comenta os elogios que recebe dos amigos e familiares que o visitam.

RESISTÊNCIA

A arquiteta lamentou a resistência de muitos trabalhadores da construção civil aos materiais reaproveitados, bem como a falta de mão-de-obra qualificada para trabalhar com produtos sustentáveis como os tijolos ecológicos. Ela falou, com tristeza, da dificuldade em seguir com obras em que a opção foi por esses tijolos que, em tese, não gerariam resíduo e nem desperdício porque são adquiridos na quantidade exata dos projetos.
Tijolos ecológicos: dificuldade com mão-de-obra

Obra utiliza tijolos ecológicos: em tese, mais sustentáveis.
“Não adianta falar que não vai ter resíduo se o trabalhador não souber utilizar o produto. Quando se usa tijolo ecológico não deve nem ter caçamba para retirar entulhos da obra. Eles já vêm com o espaço para passar as tubulações, são encaixados e tudo mais. Infelizmente, já tive muita perda de material porque não sabiam utiliza-los”, desabafou.
Painel de madeira à esquerda foi removido....

...e aproveitado no fechamento do acesso à cozinha.

Mas, nem tudo é tristeza. Ângela informou que muitas empresas de revestimentos estão se dedicando a produzir dentro de uma nova proposta, “seja na economia de água no processo produtivo,  seja no aproveitamento de um piso que quebrou e vai ser refeito”. O fator negativo ainda é o preço maior em relação à produção convencional.
Tijolos de demolição são muito procurados por sua resistência e beleza

“Ainda se fala muito em valores”, observou a arquiteta acrescentando que, ainda que timidamente, muitas pessoas têm optado por soluções que, de alguma maneira, contribuam para frear a degradação ambiental do planeta que pede socorro.

Para saber mais sobre Ângela Torres, neste blog há duas reportagens realizadas em 2012 e 2013 com a arquiteta. Leia AQUI e AQUI
Outra reportagem sobre construções sustentáveis pode ser lida AQUI


O contato da profissional é:
torresarquitetura2000@gmail.com

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